Camila Hybris, 32, projeta sua primeira exposição individual. Embora ainda não tenha definido local e data, o título da mostra será ‘Catarses’. Na filosofia, segundo Aristóteles, catarse refere-se à “purificação” sentida por meio de uma descarga emocional provocada durante e após uma representação trágica. No contexto psicanalítico, catarse é um método que consiste em trazer à consciência recordações recalcadas.
Provavelmente não haveria melhor termo para se traduzir em palavras a obra de Camila. Ela realmente se envolve de uma maneira catártica com seu trabalho, utilizando a arte como uma espécie de terapia para lidar com traumas pessoais.
“Mais do que a necessidade de retratar algo, é um processo de compreensão e cura”, revela a artista. Ela sofre de depressão, já teve crises de pânico e perdeu 80% da audição de um dos ouvidos num acidente doméstico. Além disso, teve depressão pós-parto há cerca de dois anos, o que agravou seu estado clínico.
SENTIMENTO E INTUIÇÃO
São feridas abertas, ainda em processo de cicatrização, que muitos prefeririam não tocar. Este não é o caso de Camila. Seu processo criativo se baseia justamente na imersão nestes traumas pessoais para, posteriormente, extrair deles a substância essencial de sua obra: o sentimento.
“Deixei de buscar o realismo das imagens e passei a buscar transmitir sentimentos”, revela. Não por acaso, é autodidata e confessa sem culpa que não teve formação na área. “É só feeling e técnica zero. Sou das artes, mas não sou”, brinca.
Intuitiva por natureza, pinta desde criança. Mas relembra que nutria uma certa obsessão em representar uma idealização do belo. Porém, como não conseguia atingir o ideal pretendido, sempre se sentia frustrada.
Até que em dado momento se deu conta que só “queria fazer o que estava sentindo e o que conseguia. Me expressar dentro das minhas limitações”, relata.
Por isso considera que o contato com a pintura abstrata foi uma forma de libertação, tanto é que reviu sua própria concepção sobre o belo. “O belo é uma construção. A beleza é plural. Cada um enxerga a beleza de acordo com a bagagem que possui”.
E assim, após trabalhar numa série de telas abstratas, decidiu se enveredar pelo que chama de “figuração abstrata”. Ela só usa pincel para o acabamento. De resto, somente espátulas. A tinta predominante é acrílica, mas tem usado cada vez mais tinta a óleo neste novo ciclo.
Este é seu atual foco, e são justamente estas as telas que dialogam com seus conflitos mais íntimos, como por exemplo a obra “Nossa Solidão”, que traz à tona o tema da depressão pós-parto.
DEPRESSÃO PÓS-PARTO
No centro deste quadro, uma mulher grávida com expressão abatida, cores frias, um fundo denso e os corações da mãe e do feto – os únicos expressos com uma cor quente (vermelho) – ligados pelo cordão umbilical.
A contextualização da vida de Camila dá ainda mais força ao sentimento transmitido pela pintura. Afinal de contas, assim como para tantas outras mulheres, sua gravidez foi algo inesperado.
Na época, morava em Belo Horizonte, longe dos amigos e familiares de Cuiabá. A distância fez com que se sentisse isolada de todos, exceto do ser que germinava em sua barriga. “Eu falo que a minha depressão pós-parto começou antes (do parto)”, relembra.
Apesar do sofrimento, ela explica que esse período estreitou os laços com Gaia, a filha que estava por vir e que hoje tem dois anos e dois meses. “Eu colocava música na minha barriga com fone de ouvido e ela mexia. Era uma relação muito intensa. E é, até hoje, a relação mais intensa que eu já tive na vida”.
Ela afirma, inclusive, que foi este vínculo que lhe deu forças para seguir e buscar ajuda profissional para lidar com a doença. E por fim, após 9 meses de gestação e 36 horas de parto, Gaia nasceu.
E embora este período tenha culminado no nascimento da pessoa mais importante de sua vida, ainda assim foi um período marcado por uma profunda solidão e tristeza, sentimentos que não se dissolvem da noite para o dia.
“A mãe acabou de ter o bebê, ela tem que estar rindo, feliz da vida, maravilhosa… Ela não pode estar triste ou sofrendo, porque se não ela é uma péssima mãe. Ela tem que adorar ser mãe, se não ela é uma péssima mulher”, reflete Camila em relação à pressão social e psicológica que mulheres sofrem antes, durante e após a gestação.
ATAQUES DE PÂNICO
Um outro quadro dela, intitulado “Ansiedade”, transmite essa angustiante sensação que dá nome à obra. Numa sobreposição de cores sombrias, vários rostos deformados se amontoam ao redor de uma face cujo pescoço é envolvido por duas mãos.
A feição é de pavor. A pintura remete à descrição que Camila faz de suas crises de pânico. “É como se alguém te apertasse o pescoço. Eu não conseguia respirar”.
SURDEZ
“Surdez Barulhenta” é outra obra que dialoga com questões da sua vida pessoal. A tela, também composta por cores soturnas, mostra alguém desesperado com as mãos sobre o rosto enquanto jorra, de um dos ouvidos, alguma substância que preenche quase metade do quadro.
No caso, faz referência à perda de 80% da audição do ouvido direito, num incidente cuja sensação não lhe foge à memória. “É como se uma bomba estourasse dentro da minha cabeça. Uma dor muito forte. Mas o mais bizarro não foi a dor, foi a sensação”. Desde então, Camila passou a ouvir um zumbido que até oscila a intensidade, mas jamais dá trégua.
O labirinto (órgão responsável pelo equilíbrio e orientação do corpo) também sofreu uma lesão, o que afeta um pouco sua orientação espacial. “Às vezes eu escuto, mas não sei de onde vem o som”.
ARTE COMO TERAPIA
Em relação à depressão, Camila acredita que possivelmente convive com a doença desde a adolescência, mas que só fora diagnostica e começou a se tratar recentemente.
Ela afirma que a busca por ajuda profissional aliada à experimentação artística a qual se propôs têm a ajudado bastante. Aliás, considera que todos deveriam ter acesso à terapia para se compreenderem melhor e facilitar a vida em sociedade.
E além de funcionar como terapia complementar, a arte, neste contexto, ainda desempenha um importante papel social. Afinal, de acordo com Camila, muitas pessoas se identificam com as obras postadas em suas redes sociais.
E assim, ainda que não tenham muita proximidade com a artista, a procuram para falar sobre estes temas delicados e íntimos, pois muitas vezes não têm com quem falar.
Após publicar a tela sobre depressão pós-parto, por exemplo, muitas gestantes a procuraram para relatar “o quanto estavam sofrendo. E que se sentiam culpadas por não estarem felizes, por não estarem radiantes. Isso é absurdo. A gente tem que desconstruir esse tipo de coisa porque é uma forma de prisão para as pessoas, essa imposição da felicidade”, salienta Camila.
Esse tipo de interação reforça nela a importância de se fazer um trabalho que traga para o debate estas questões, uma vez que muitas destas ainda são encaradas como tabus pela sociedade.
Neste contexto de vida e obra, a frase de Fernando Pessoa que ela escolheu para legendar uma de suas pinturas nas redes sociais ganha novas camadas de profundidade: “A arte é a auto-expressão lutando para ser absoluta”.