Antônio Mulato – 12/06/1905 – 15/09/2018

A longevidade de um povo

“Se um homem não descobriu nada pelo qual morreria, não está pronto para viver”. A frase é de Martin Luther King, uma das figuras mais simbólicas na luta dos negros por direitos civis. Caso estivessem vivos, o ativista político teria 24 anos a menos do que Antônio Benedito da Conceição, popularmente conhecido como Seo Antônio Mulato. Até 15 de setembro de 2018, quando veio a falecer, Seo Antônio era o quilombola mais velho do Brasil, 113. Ele nasceu e foi criado no Complexo Quilombo Mata Cavalo, próximo ao município de N. Sra. Do Livramento-MT (50 km de Cuiabá).

Apesar das barreiras espaciais, temporais e idiomáticas, King e Mulato tinham muito em comum. Afinal, além da descendência africana e do legado de resistência sem violência, ambos compartilharam uma nobre razão pela qual dariam a vida: a luta pelos direitos de um povo.

A comemoração dos aniversários de Seo Antônio já era uma tradição na comunidade. As festas sempre contavam com iguarias requisitadas pelo aniversariante, como rapadura, melaço, banha de porco, farofa de banana, cozidão, feijão com catuni (joelhos de boi) e guaraná ralado. Provavelmente este tipo de alimentação não seria adequada a um senhor nesta idade, mas, quem sabe, foram estes os alimentos que reforçaram sua invejável vitalidade, pois possuem, em suas raízes, íntimas conexões com a própria história de Mata Cavalo, isso porque a comunidade sempre se manteve graças à cultura de subsistência, plantando, dentre outras coisas, milho, mandioca, cana e banana, além da criação de gado, aves e porcos.

De todo modo, quando perguntado, não pestanejava em revelar o segredo para tamanha longevidade. “O segredo para viver muito tempo? Fazer o bem, que Deus olha aquela pessoa”. Pois haja fé e saúde, o homem dispensa inclusive remédios, só toma, às vezes, quando sente “uma tontura”.

Dois legados: resistência e educação

No passado, a região da comunidade foi palco de muita luta e resistência. Para se ter uma ideia, nos anos 40, chegaram a ser expulsos da terra que lhes é de direito, restando apenas seis famílias remanescentes, dentre elas, a de Seo Mulato. Somente a partir da década de 60, os membros dispersos começaram a retornar ao local. Este intenso e extenso conflito foi motivado por fazendeiros, que tentaram, de todas as formas possíveis, acrescentar o território quilombola às áreas de suas propriedades.

Por fim, após muitas idas e vindas judiciais, ficou constatado que, em 1883, a Sinhá Ana Tavares, por não possuir descendentes, doou 14 mil hectares de suas terras a escravos libertos e não libertos. Com a abolição da escravatura, o local, que passaria a ser chamado de Mata Cavalo, se tornou ponto de convergência de negros, assim, com o passar dos anos, sua população aumentou progressivamente. Hoje em dia o complexo é composto por cerca de 400 famílias, divididas em seis comunidades quilombolas.

Além da luta pela terra, Antônio Mulato travou uma verdadeira cruzada para garantir o acesso à educação, pois, apesar de analfabeto, sabia que a alfabetização poderia mudar o futuro de seus descendentes e, consequentemente, da própria comunidade.

Ciente disso, correu atrás de toda papelada e resolveu a parte burocrática. Só faltava  encontrar alguém que cedesse o terreno. Um fazendeiro local, Seo Manequinho, foi quem colaborou com a empreitada. Entretanto, quando seus filhos foram estudar, uma nova decepção. “Como naquele tempo não tinha professora negra, veio uma branca. Meus filhos foram contentes para o primeiro contato com a escrita, mas não cabia todos os alunos na escola, então a professora deixou só os brancos e mandou os negros de volta para casa”, relembrou Antônio Mulato em 2017.

O acontecimento deixou Antônio transtornado. Tanto é que foi até a fazenda, bateu boca com a educadora, provou que era ele o responsável pela unidade escolar e garantiu vagas para os filhos e as demais crianças negras. Esta passagem de sua vida lembra uma outra frase de Luther King, de seu histórico discurso em 1963, quando disse ter um sonho, “o sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não pela cor de sua pele”.

Pois bem, ao relembrar a trajetória de Mulato, dentre tantos feitos e conquistas, duas se destacam: a luta pelo acesso à educação formal aos descendentes de quilombola e a resistência para garantir e preservar as terras e as tradições de sua comunidade.

Portanto, por ser um homem visionário e jamais ter fugido dos enfrentamentos necessários para garantia os direitos de seu povo, Antônio Mulato se tornou a principal referência/símbolo para a história da comunidade.

 

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