Cuiabá MT, 11/11/2024

Após sucesso na Europa, companhia teatral cuiabana traz espetáculo ao Sesc

Após estrear (01.02) e ter ótima repercussão no Festival NTL, na Dinamarca, o espetáculo “EntreNãoLugares”, uma co-produção da Cia Pessoal de Teatro e do Nordisk Teaterlaboratorium (Dinamarca), chega ao Brasil. A peça, dirigida por Julia Varley e protagonizada por Juliana Capilé e Tatiana Horevicht, será encenada no Sesc Arsenal nos dias 30 e 31 de março, ambas as apresentações às 20h.

O que conduz a trama são as migrações humanas, tema sempre em pauta no mundo contemporâneo, principalmente na Europa, o que faz o grupo vislumbrar novas possibilidades. “Pode ter uma carreira internacional, porque é um espetáculo leve – fácil de carregar, pouca bagagem -, tem a legendagem pronta e trata de um assunto que está mais discutido fora do Brasil do que dentro”, avalia Juliana Capilé, dramaturga (ao lado de Julia Varley) e atriz da peça.

A repercussão na Dinamarca só endossa esta tese. “Tivemos uma recepção muito calorosa. No geral, os espetáculos brasileiros são bem recebidos na Europa”, pontua. E é importante destacar que ‘EntreNãoLugares’ foi a única peça nacional selecionada para o Festival NTL.

O espetáculo estreou em festival na Dinamarca

DO QUE SE TRATA O ESPETÁCULO?

Segundo Juliana, “não tem um gênero definido. Tem um pouco de tudo; cenas cômicas, cenas dramáticas, uma mistura de cada coisa”. Neste contexto híbrido estão inseridas as protagonistas, duas catadoras de papel que se deparam com uma caixa de livros. Elas leem algumas passagens enquanto rasgam as obras para serem recicladas. “Parece uma incoerência no início, mas não é. Quando lemos estamos reciclando”, esclarece Juliana.

Durante a elaboração do texto foram utilizados trechos de diversas obras que têm como cerne migrações e viagens. Dentre os autores e autoras, pode-se citar Robert Graves, Zélia Gattai, Clarice Lispector, Konstantino Kaváfis, além de partes de músicas brasileiras. “São recortes e pequenos trechos que foram costurados juntos, como uma colcha de retalhos”, explica.

O MITO DE ULISSES

E dentre tantos recortes literários que ajudam a constituir a narrativa, um se destaca. O mito de Ulisses permeia toda a trama, de modo que se estabelece um paralelo entre o herói mitológico e os refugiados. Segundo Juliana, assim como Ulisses, “tudo que eles [refugiados] querem é voltar para casa e não podem; ou porque a casa deles não existe mais ou porque não podem estar lá”.

Neste contexto, compara a situação de um amigo sírio na Dinamarca com a realidade de artistas haitianos que vivem em Cuiabá, pois, de acordo com ela, a rejeição e discriminação que sofrem são muito parecidas. Amparada por esta vivência, questiona quem alega que refugiados ou imigrantes ameaçam o bem-estar da população que os recebe. “Viajamos sempre e por muitos motivos diferentes, mas para onde estamos indo enquanto humanidade?”

Não por acaso, ciente da importância de levantar tais questões, o espetáculo usa da metáfora da reciclagem de livros para abordar temas complexos, como a imigração que formou o Brasil, o êxodo forçado dos povos africanos e os refugiados contemporâneos. “As histórias não estão escritas em livros, mas nos corpos errantes, com gotas de suor na terra e lágrimas na areia”, diz um trecho da sinopse.

As personagens protagonistas são duas catadoras de papel

ULISSES E ELAS

A estadia da Cia Pessoal de Teatro no Velho Continente durou dois meses. Elas (todas as integrantes são mulheres) ficaram satisfeitas com as experiências – teatral e humana – vivenciadas durante esse período. No entanto, me dando certa liberdade poética que o jornalismo não costuma permitir, é possível inferir que existe nelas um desejo de retorno um tanto quanto parecido com o que identificaram em Ulisses e nos refugiados.

“Nos interessa apresentar na nossa terra, onde todos vão entender o que estamos falando e como estamos falando. Isso é importante para nós”, ressalta Juliana, dialogando diretamente com o que disse sobre o herói grego: “A viagem de Ulisses foi cheia de aventuras e grandes feitos, mas tudo que ele queria o tempo todo era voltar pra casa”.

Esta conexão – entre elas mesmas, o mito e a abordagem do espetáculo – reforça o pensamento de Juliana sobre como os mitos possibilitam universalizar as histórias, afinal “o teatro tem a tradição de falar do humano para o humano sobre o humano”. E esta natureza do fazer teatral impõe o serviço “de tratar dos assuntos de forma abrangente, mesmo quando falamos do nosso quintal”, complementa.

HOMENAGEM A VILMA CLARA MENDES HOREVICHT

A ideia para construção das personagens surgiu de uma história de Vilma Clara Mendes Horevicht, mãe de Tatiana Horevicht, que interpreta uma das catadoras. Na adolescência, quando Vilma deixou a Paraíba rumo ao Paraná, levou consigo uma caixa de livros didáticos. Porém, assim que chegou ao destino, percebeu que eles já não serviam mais para nada.

Esta memória inspirou a diretora Julia Varley, que fez questão de utilizá-la como fio condutor da peça. Porém, em 2018, Vilma faleceu após sofrer um acidente automobilístico. “Estreamos oito meses depois e dedicamos a ela”, conclui Juliana.

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