‘Não dá pra ser preta e fazer literatura brincando’, ressalta escritora que figura na lista obrigatória do vestibular da Unemat

O livro ‘Dona’, de Luciene Carvalho, aborda a condição da mulher após os 50 anos e figura em lista com Machado de Assis, Mia Couto e Augusto Boal

Luciene Carvalho foi a primeira mulher negra (e ainda é a única) a ocupar uma cadeira na AML

Todas as pessoas interessadas em ingressar na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) terão que ler o livro “Dona”, de Luciene Carvalho, 53. A obra foi incluída na lista de leituras obrigatórias para o vestibular da instituição. Além dela, os outros nomes que compõem a lista são Machado de Assis, Mia Couto, Manuel Antonio de Almeida, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal.

Apontado pela crítica como sua obra mais madura, “Dona” é o 11º livro da corumbaense radicada em Cuiabá, publicado em 2018 pela editora Tanta Tinta, três anos após Luciene entrar para a história como a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Mato-grossense de Letras (AML). Estas conquistas pessoais só atestam uma trajetória pautada na luta para ser reconhecida pelo que é: poeta. Mas não só enquanto pessoa, mas profissão.

“Eu trabalho com literatura. Não dá pra ser preta e fazer literatura brincando […] Eu encontro na literatura um caminho que cabe na ressíntese do que sou. A literatura me cabe, mas eu a entendo como um propósito de vida. Eu busco encontrar dignidade de carreira, profissionalização no fazer de escritora”, ressalta.

Suas falas transmitem o peso das palavras preenchidas de verdade. Afinal de contas, diante de pessoas cada vez mais utilitaristas e insensíveis, ser poeta é um ato de resistência. Mas ser poeta nunca foi questão de escolha, e, neste contexto, é quase uma sina. A insensibilidade mundana é cruel com a natureza dos que sentem.

Não por acaso, num passado cada vez distante, Luciene chegou a ser internada em clínicas psiquiátricas, além de vivenciar situações problemáticas com o uso de drogas. E embora hoje seja uma imortal pela AML, estas experiências passadas só afloraram ainda mais sua humanidade. “O fato de eu ser negra, de ter diagnóstico psiquiátrico, de ter mais de 50, só me fazem mais humana”, reflete. 

Todavia, ainda que sua obra e sua narrativa pessoal reforcem constantemente o orgulho de ser mulher e de ser negra, ela também sempre faz questão de reafirmar uma outra condição permanente, porém no âmbito da alma. Quem já conversou com Luciene Carvalho sabe que ela vive num estado permanente de poesia, diferente de poetas pela metade que só o são enquanto escrevem.

“Acho bacana que seja eu a primeira preta a ir pro vestibular (da Unemat). Mas acima da questão racial, da questão de gênero, eu sou poeta. Eu sou poeta por condição de alma. Eu sou poeta por decantação, porque o mundo entra pelos meus poros e o mundo fragmenta. É decantado em mim”.

E ela decanta toda a complexidade do mundo em palavras acessíveis aos ouvidos de todos. Seu berço estético é oral, seu estilo literário é fruto da oralidade poética. E esta concepção literária rompeu as fronteiras do livro para encontrar ressonância nas ruas. “Eu desaprendi um pouco do português para reinventar o português no convívio com o hip hop, que eu acho que é a grande resposta ao capital, por ser mundial e espontâneo. Aprendi muito com esse olhar endógeno e periférico. O Hip hop me situou”.

DONA DA P*** TODA

E ‘Dona’ também se insere nesta tradição oral. O livro é composto por poemas divididos em cinco capítulos (‘Espelho’; ‘Caixa de Pandora’; ‘Chaves’; ‘Semáforo; e ‘Mandala’) e aborda a condição da mulher após os 50 anos de idade.

O primeiro capítulo aborda a autoaceitação e autorreconhecimento. O segundo trata do que é tragédia e dor. O terceiro foca na virada da chave da destinação feminina, quando a mulher começa a usufruir de sua própria condição. O quarto trabalha com o fluir da mulher, “sair de dentro de si, de dentro da casa, de dentro do útero, seja por luto, seja por descasamento”. E o último aborda a integração entre corpo e alma, a plenitude espiritual da mulher após ultrapassar metade de um século.

‘Dona’ não tem dona. É um tanto de Luciene e um tanto de tantas outras. Não por acaso o título do livro remete ao pronome de tratamento utilizado para se dirigir genericamente a mulheres nesta faixa etária. Porém, como é natural da poesia, sua significação não se restringe a isso. “Dona é a mulher dona de si… Não sei, sabe? Não sei se ela é dona de si, mas ela está empoderada em algum nível […]. Porque ela começa a ser dona dela, querendo ou não, e ela é dona de muitas coisas; herdadas, construídas… Isso… Dona!”, explica a autora.

A história de Dona começou quando Luciene se aproximava da casa dos 50 e percebeu que havia algo estranho. “Fazia um tempo que eu estava inquieta, com alguma lacuna, quando pensava em poesia e quando pensava em mim na poesia”.

A crescente angústia se intensificava quando, enfim, ela se autodiagnosticou. “Deprimia, parecia que surtava, uma tristeza, um dissabor… E não entendia o que era aquilo. Até que nas vésperas de fazer 49 anos, em 2014, a sacada veio: ‘putz, eu tô na crise de 50’”.

Além do diagnóstico, também se deu liberdade para receitar o próprio remédio: escrever. Logo notou uma peculiaridade em relação àquele novo tempo que lhe afligia. Percebeu que não havia lido nada que “falasse da mulher nesse período, nessa cronologia do existir”.

Se deu conta que não havia sequer uma nominação específica. “Tem as novinhas que o funk tanto celebra; tem as gostosas de 20 e poucos; Balzac tinha se especializado nas de 30; as de 40 eram lobas… Mas e estas mulheres de 50?”, questiona.

Esta reflexão deu início a uma pesquisa de campo que durou quatro anos, sempre focada na observação de mulheres que vivenciavam este mesmo período da vida, além, é claro, dela mesma. Ela relata que, durante suas observações, constatou uma espécie de vestígio de cansaço acumulado, como se “aquele primeiro delineio de envelhecimento, aquela espécie de puberdade da velhice, fosse muito penoso de carregar”.

Então, ao avaliar relações e imposições sociais, outro ponto lhe chamou atenção: “É como se o traço e a ruga fossem responsabilidades da mulher, tipo ‘não se cuida’. Então comecei a perceber a razão da expressão ‘não se aceita’”. Neste sentido, Luciene também lembra, porém sem fazer qualquer juízo de valor, de mulheres que recorrem à tecnologia e cirurgias plásticas para aparentar ter menos idade, muitas vezes motivadas por esta construção social.

Estas e outras percepções foram compondo o material do livro. Porém a conclusão, tal qual a poesia, se mostrou inconclusiva. A única certeza era que a mulher contemporânea na faixa dos 50 já não cabia em definições genéricas. “Não tem só mais aquela palavra menopausa. Tem mais do que calores, é bem mais do que colágeno, é bem mais do que uma vítima pra garotos de programa, é bem mais do que o momento em que o pai troca a mãe, é bem mais do que cabelo grisalho… Mas o que que é?”

A própria Luciene dá luz à questão retórica com que finaliza o parágrafo anterior. “Eu não sou dona do saber dos 50 anos. Eu só quis mostrar a ponta do iceberg de forma bem específica”. Em seguida, sinaliza uma possível direção: “A consequência pode ser que a mulher de 50 ganhe a manutenção do título de fêmea. […] É disso, dessa ruptura desse espaço incógnito. Eu acredito que ‘Dona’ traz a flora, a flor, dos 50. E é flor ainda. E é fêmea ainda. Não uma fêmea que se desculpa por existir, mas uma fêmea que escolhe a vida”.

Nesta perspectiva, dona de si e da própria poesia, Luciene Carvalho conjuga a vida no presente: “Vou buscando meu ajeitar no tempo/ vivendo no agora/ buscando algum armistício/ com tudo o que sou;/ atenta ao que passo,/ não ao que passou”. Afinal de contas, “as gentes ao redor/ não têm a menor noção/ da mutação em curso/ sem cessar jamais;/ falam duma eu/ que eu já não sou mais”.

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