O pecado de Morgan e a verdadeira geração do “mimimi”

Em 2006, o ator Morgan Freeman concedeu uma entrevista para o jornalista Mike Wallace, no programa 60 Minutes da TV CBS, e desde então ouço a sua frase, retirada completamente de contexto, sendo repetida por amigos, colegas e conhecidos (majoritariamente brancos) quase como se fosse um mantra ou uma ode à fórmula secreta para acabar com o racismo, que eles nem acreditam tanto assim que existe.

Na ocasião, o ator estava dando uma opinião a respeito do mês da história negra nos EUA (fevereiro), sobre o qual achava incoerente por acreditar que o negro era personagem fundamental em toda a história do povo americano, portanto estabelecer um mês era quase um desrespeito. Eis que ele solta a seguinte pérola: “O dia em que pararmos de nos preocupar com Consciência Negra, Amarela ou Branca e nos preocuparmos com Consciência Humana, o racismo desaparece”.

Parece uma frase despretensiosa, demodê ou apenas um versículo composto de palavras de efeito, mas há 12 anos ela é utilizada para tentar desmerecer qualquer discurso realizado em prol da igualdade racial. Nem irei entrar no mérito de que ela não foi dita exatamente desta maneira.

Antes de mais nada preciso deixar claro que eu adorava o Morgan Freeman, curtia mesmo. Ele era um desses atores espetaculares que quando a gente fica sabendo que está em algum elenco, já ficava de olho. Não à toa, o cara tem um Oscar e um Globo de Ouro no currículo, além de vários prêmios e indicações.

Se você nasce negro, buscar referências positivas é uma tarefa árdua. Qual ator que parece com você? Qual professor? Personagens de desenho animado? Doutor? Brinquedos? Então, quando achamos alguém que tem sucesso e se parece com a gente é um acalento. E o Freeman era um desses caras. Por isso me doeu tanto ter que ler isso e pensar: pô, cara! Como assim?

A nossa herança escravagista é pesada demais. A escravidão foi abolida há apenas 130 anos e isso ainda tem reflexos gigantescos na sociedade. Nossas palavras são carregadas de significados ruins quando se tratam da nossa cor, nosso cabelo, nossos traços, tradições, origens e o que isso fez de nós? Domesticou.

Por muito tempo passamos pano para racista e essa parece ser uma herança difícil de acabar. A necessidade de nos sentirmos aceitos pela sociedade e pelos nossos amigos e amigas brancas fez com que fechássemos os olhos para as injustiças sociais que sofríamos ou víamos os nossos semelhantes passando.

Falar de racismo é muito mais espinhoso para um branco do que para um negro. Quem é preto vive isso no dia a dia desde quando nasce. Sua mãe fala que o seu comportamento tem que ser muito mais exemplar e as mães dos seus amigos te olham com a mesma desconfiança que os seguranças do shopping.

Já o branco só teme ser tachado como um racista. Apenas isso. Porém, não querem mudar o estilo de vida ou tentar equilibrar a balança de alguma forma. Então qual é a formula mágica para combater o racismo que eles criam?

Simples, não fale sobre racismo, cotas, políticas sociais ou injúrias raciais. Deixe tudo como está e se alguém reclamar fale que é mimimi e vitimismo, pois se a dor não é deles, não é de mais ninguém.

Segundo o Centro de Soluções de Política Global, em 2014, nos Estados Unidos, os brancos possuíam um patrimônio líquido médio mais de 15 vezes maior do que os negros (US$ 111,740 contra US$ 7,113), e mais de 13 vezes maior do que os latinos (US$ 111,740 contra US$ 8,113 dólares).

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aqui no Brasil o percentual de negros no nível superior quase dobrou em 10 anos de políticas afirmativas. E em 2005, um ano após a implementação de ações, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos de 18 a 24 anos frequentavam uma faculdade. Em 2015, o número subiu para 12,8%. Porém, comparado com os brancos, o número equivale a menos da metade com a mesma oportunidade, que eram 26,5% em 2015.

Em dados gerais, somente 34% dos estudantes universitários do Brasil são considerados negros. Já no sistema penitenciário esse número sobe para 64% e em algumas regiões do país pode chegar a 75% (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias).

Sabe o que acontece quando a gente para de falar de racismo e diz que é tudo vitimismo? Bem, segundo o FBI, em 2017, os crimes de ódio cresceram 17% nos EUA, no primeiro ano do governo Trump, sabe quem diz que tudo é mimimi e vitimismo? Pois é…

Ainda vai falar que é vitimismo, meu? Na boa, eu não vou mais passar pano para você, pois é o seu racismo que tá se vitimizando por medo de ser descoberto.

 

Gustavo Nascimento é jornalista, atua em Cuiabá desde 2010. Curte artes, esportes (é Faixa Marrom de Jiu Jitsu), é fã de histórias em quadrinhos e de cultura pop.

 

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